Para uns capoeira é luta de
preto, coisa de vândalo, dança de escravos. Para mim a capoeira é amor, amor à
primeira vista. Ainda lembro daquele som do atabaque que me fez chegar mais
perto. Ouvi a voz de uma mulher cantando, e o que ela cantasse os que tinham
ginga no pé respondiam, e respondiam em coro. Mortal, meia lua, martelo e
macaco.Parecia que sabiam voar. Era um espetáculo de energia comandado pelo
choro do berimbau, pelo batuque do atabaque, pela voz daquela capoeira que fez me
apaixonar, pela arte que me fez gingar.
Sinalizado pelo som dos
instrumentos a roda estava no fim, o mestre falou “iê” e na mesma hora houve
silêncio para dar atenção ao que o capoeirista ia dizer. Ele falou sobre quase
tudo que senti naquele momento. Comentou sobre a energia da roda, agradeceu aos
escravos por terem deixado um presente para o Brasil, falou dos mestres que se
foram, citou a camaradagem e o respeito que são essenciais nessa dança de
gladiadores. Ele também parabenizou cada discípulo que já tinha tempo de capoeira
o suficiente para merecer tal reconhecimento. Foi quando virou para a dona da
voz da roda e disse que aquela era Aidê, a negra dos olhos verdes que cantou
para a luta de camaradas acontecer.
Com o cabelo cacheado amarrado, top
preto, calça branca e uma corda azul na cintura, a capoeirista sorriu sem jeito
ao receber carinho por ter emprestado sua voz. Podia ser poesia de apaixonado,
mas aquela vestimenta caia tão bem na negrinha que seria um crime pedir para
ela tirar seus pés do chão e colocar um salto alto.
Estava tão atônito que me dei ao luxo de achar
que aqueles olhos verdes tinham me enxergado. Pude sentir o calor do seu olhar
me mirando quase que sem querer. Que pretensão a minha achar que eu era o alvo
da atenção de Aidê.
Paixão é assim: Uns simplesmente a deixam passar, outros se
deixam levar por ela, e apenas poucos, os que têm coragem, resolvem correr
atrás, vivê-la. Paixão nem sempre vira amor, mas ainda não conheci um amor que
não tenha sido paixão. Entrar para a capoeira me parecia a desculpa ideal para
ficar perto de Aidê.
No dia seguinte estava eu, às
sete , de calça branca pra aprender a dar mortal. Pronto para surpreender a
negrinha. O mestre me cumprimentou e me apresentou ao grupo, disse que a
família agora tinha mais um novo integrante. Assim que o alongamento acabou eu
perguntei como eu poderia treinar os saltos. O meu mestre colocou a mão no meu
ombro e disse para eu ir devagar, que para andar é preciso saber engatinhar.
Dessa forma ele me passou o básico da capoeira. Aprendi a gingar, a esquivar,
passar os golpes mais básicos, e claro, o caminho da casa de Aidê. Quando o
treino terminava, eu fingia que a casa de Aidê era caminho da minha só para
ficar um tempinho a mais conversando com ela. Não que eu conseguisse falar
muita coisa, a vergonha não me permitia, mas tudo o que me interessava já estava
ali, caminhando na mesma direção que eu.
Foi quando ganhei meu nome de
guerra, deixei de ser Rodrigo, passei a ser chamado de Girafa. Não pela minha
altura, mas quem já viu girafa nascer sabe que ela não engatinha, já nasce
andando. Meu encanto por Aidê era confundido por dedicação a capoeira. Em pouco
tempo estava surpreendendo muita gente, menos quem eu esperava que me olhasse
diferente.
Chegou o dia que Aidê passou a
dispensar minha habitual companhia de volta para a casa. Essa negrinha tinha
uma criatividade incrível para desculpas esfarrapadas: Dormir na casa da avó,
ter que passar no mercado, ajudar o mestre a guardar os instrumentos. Cada dia
era um compromisso que a impedia de fazer o caminho de casa.
Dizem por aí que no amor não
adianta nada ser rei ou doutor, que a dor te pega de jeito seja você quem for. A
maior rasteira que um capoeirista pode levar é a do coração, esse é o único
tombo que não dá para enfeitar e fingir que faz parte do espetáculo bamba.
Na roda de mês a minha negrinha apareceu de mãos dadas com
outro. Não sabia seu nome, lembro dele em algumas rodas, mas nunca imaginei que
alguém seria capaz de roubá-la de mim. Esse mundo é cruel, o amor mais ainda.
Todo o meu esforço para encantar Aidê foi
em vão no momento em que percebi que os olhos verdes já tinham dono, e
não era eu. Para completar a tragédia eles fizeram dessa roda de mês, a despedida: A negrinha junto com capoeira iam
para outra cidade tentar a vida juntos.
Essa noite o berimbau chorou como nunca mais ouvi, essa
noite deixei o coração bater mais forte, deixei a capoeira me levar. Descobri
que o motivo que me fez entrar para a capoeira estava partindo, mas que a
capoeira continuava ali. Entendi que não importa quantas voltas o mundo dê, ela
vai continuar ali pra perceber meu lamento, comemorar minhas alegrias, escutar
meu silêncio. A capoeira.
Essa paixão pela negrinha me trouxe o amor pela capoeira,
enquanto a capoeira me trouxe mil motivos para me manter de pé. Nada é em vão,
nenhuma dor é banal. Você pode cair, dar um sorriso e fingir que foi
proposital, tropeçar e fingir que faz parte da dança. O capoeira aprende que
para tudo tem uma saída, que para tudo a gente tem um sorriso. A única rasteira
que realmente derruba o capoeira é o amor, essa rasteira é certeira, mas não é
mortal. A queda pode até ser grande, mas enquanto o berimbau tocar, o capoeira
sabe que vale a pena levantar e voltar a gingar.